(LUFT, Celso Pedro. Língua e Liberdade: por uma nova concepção da língua materna e seu ensino. Porto Alegre: L&PM, 1985)
Chomsky, famoso linguista americano da atualidade disse certa vez que "Quem fala uma língua sabe muito mais do que aprendeu." Outro linguista (gramático de profissão, por que não?) fez um chamamento "a la Chomsky" em seu livro "Língua e Liberdade", cuja estrutura da narrativa se faz justamente para tentar convencer o possível leitor de que há muito mais para se aprender, compreender e vivenciar quando se trata de linguagem.
A obra de Luft é composta de artigos de jornal e o fez em diferentes épocas, o que por si só, já traz um elemento bem interessante do ponto de vista da narrativa: não é um texto engendrado metodicamente estruturado editorialmente. Os textos que compõem a obra são "conversas" com aquele cujo dia começa com o "passar dos olhos" sobre as notícias mais quentes do dia. Entre os destaques políticos, economia e violência de toda espécie, figurava nos jornais para o qual escrevia, a notícia mais improvável: a de que nascemos, segundo Luft, programados para falar:
"O ser humano nasce provido de uma gramática genérica, "gramática universal, de universais linguísticos". É a tese do inatismo, muitas vezes mal interpretada. Evidentemente ninguém nasce com a gramática de uma língua determinada. Nasce, isto sim, com uma estrutura linguística genérica, base para a apreensão das estruturas específicas de cada língua. (LUFT, 1985, p. 57-58)
A gramática universal, portanto, no dizer do autor, é a condição genética prévia para a aprendizagem da língua pela criança, onde muito cedo surpreende sabendo e falando muito além das frases que ouviu.
Subversão Linguística?
Luft toma pra si a irreverência de Luís Fernando Veríssimo em sua crônica do "Gigolô" e tenta "redizer" um construto de reflexões acerca da problemática que se instaura, principalmente, para os professores de Língua Portuguesa:
"Eis um óbvio que frequentemente esquecem os que transformam o estudo da língua em estudo de Gramática. Uma crítica indireta à escola tradicional, onde é tão raro que se estude a língua como meio de comunicação - atual, vivo, eficiente." (LUFT, 1985, p. 16)
Com isso o autor está afirmando que o interessante mesmo é comunicar e que "a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e deve ser julgada exclusivamente como tal." (Luís Fernando Veríssimo)
Luft traz a noção de língua como meio de comunicação que tem sido tachada de utilitária, pragmatista. "Ninguém escreve para não ser lido" (LUFT, 1985). Continua o autor dizendo que a boa comunicação verbal não tem nada a ver com a memorização de regras de linguagem nem com a disciplina escolar que trata dessas regras, e que geralmente, nas escolas, toma o lugar do que deveriam ser as aulas de Português: leitura, comentário, análise e interpretação de bons textos, e tentativa constante de produzir pessoalmente bons textos.
A receita lufteana de aula de Português implica nos seguintes questionamentos segundo o meso autor: por que os professores em geral não capacitam melhor os alunos para a comunicação oral e escrita? Porque em vez de fazê-los trabalhar intensamente com sua gramática interior, fazendo frases, compondo textos, lendo e escrevendo, pretende impor-lhes Gramática, teorias e regras.
A conclusão lufteana incide, por assim dizer, em que "um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais, incute insegurança na linguagem, gera aversão ao estudo do idioma, horror à expressão livre e autêntica de si mesmo." (LUFT, 1985)
Importante evidenciar o testemunho de Luft como professor ao lidar com o dilema dual entre língua internalizada e língua aprendida do ponto de vista da tradição gramaticalista:
"Minha experiência de professor me ensinou que os alunos mais talentosos em linguagem, futuros escritores, são os mais avessos a aulas de Gramática. Funciona neles, creio firmemente, um mecanismo de defesa que protege sua gramática implícita (seu saber linguístico não verbalizado mas eficiente) contra a Gramática explícita (regras impostas de fora), normalmente transformada em gramatiquice. Eles "sabem" sua língua muito mais e melhor do que os professores poderiam ensinar, porque a manejam bem, com prazer e eficiência. Com arte. É um bem que precisam defender com unhas e dentes." (LUFT, 1985, p. 26)
É clara a opção de Luft por um ensino de língua baseado na liberdade de expressão (oral e escrita). Ao usar o termo "gramatiquice" ele deixa muito clara a sua militância: não há propriedade privada no mundo das palavras. Elas são de todos, propriedade pública. Mais exatamente: as palavras são do povo.
A Teoria da Linguagem
A obra de Luft não encerra suas críticas ao ensino puramente gramatical mas oferece ainda e felizmente, elementos teóricos importantes para a reflexão sobre protagonismo linguístico desejável a todo falante de uma língua.
Está presente aqui a Linguística moderna, sobretudo na vertente gerativo-transformacional, chamando a atenção para a diferença entre gramática dos falantes e a gramática dos estudiosos e teóricos. Sobre essa questão, Luft chama a atenção para os estudos do linguista Noam Chomsky que afirma por sua vez que "Competência de linguagem" é a capacidade dos humanos de se comunicarem por meio de sistemas de sinais vocais, e "Desempenho de linguagem" vem a ser o comportamento linguístico, os efetivos atos de fala, as utilizações circunstanciadas das virtualidades da língua. Existe uma gramática verdadeira para Luft:
"Esse sistema de regras que os falantes interiorizam na infância é que constitui a verdadeira gramática da língua, a legítima, autêntica, da qual todas as demais (livros, teorias de filólogos, linguistas, etc) não passam de reproduções." (LUFT, 1985, p. 40)
Ideias precisas e atualizadas sobre linguagem, língua e gramática, fala e escrita, variantes sociais e culturais, registros de linguagem, constituem os fundamentos imprescindíveis a todos os professores de línguas, aos professores em geral, e em especial ao professor de língua materna. (LUFT, 1985)
Segundo o autor, há uma espécie de ingenuidade no ensino tradicional de língua onde o professor não se dá conta de que todo falante nativo "sabe" sua língua, apenas precisa desenvolver, crescer, praticar em outros níveis e situações. Falta, portanto, uma formação linguística séria e sistemática aos professores. Aqui, reside uma das maiores contribuições de Luft nessa obra: revelar um dos problemas mais graves a ser enfrentado que é o da formação docente para um ensino de língua materna sob a perspectiva da Linguística moderna.
A escola tradicional fracassa justamente naquilo que constitui seu centro de atenções. Toda a insistência na Gramática encerra, paradoxalmente, nisto: teoria gramatical é o que menos aprendem os alunos.
A assistematicidade, segundo o autor, e as incoerências da Gramática Tradicional, mais as novidades teóricas da Linguística, da Semiótica, da Teoria da Comunicação, costumam resultar num verdadeiro caos teórico.
Divergências entre gramáticos e linguistas, entre o tradicional e o moderno, dificuldades inerentes a qualquer teorização: tudo isso só pode resultar em conflitos reflexivos sobre a linguagem entre professores e alunos.
"As modernas ciências da linguagem fornecem muitas ideias e noções, dados e elementos para reformular o ensino da língua materna. Uma das ideias fundamentais relaciona-se com o processo de aquisição de linguagem. Como aprendemos a falar? As respostas a esta pergunta poderão solidificar uma base extraordinária para fundamentar um novo tipo de ensino de língua materna." (LUFT, 1985, p. 56)
Nascemos Programados para Falar
Para Luft, o primeiro requisito de um professor de língua materna é ter noções corretas do que é linguagem e língua, e fazer delas o alicerce de suas atividades. Essas noções corretas se podem buscar na Linguística moderna. Linguistas contemporâneos alertam, portanto, para um axioma que diz exatamente o inverso do ingênuo pressuposto tradicional: toda pessoa sabe a língua que fala.
O que seria, então, saber uma língua? No dizer lufteano:
"Saber a língua é saber a gramática respectiva. Saber a língua não se confunde com saber se comunicar. Saber a língua é saber o sistema oral. A escola deveria cuidar primariamente da fala dos alunos, único meio de comunicação que a imensa maioria deles terá pela vida toda." (LUFT, 1985, p. 70-72)
Sim, algumas pessoas objetarão que sou idealista, que "na prática a coisa não funciona". Idealista como foi, Luft, insiste na verdade linguística de que os alunos sabem a língua antes mesmo de entrarem na escola. Não falam a língua dos doutores, ou dos clássicos, que é língua escrita, outro sistema de regras.
Em sociedades econômica e culturalmente heterogêneas, é inevitável a heterogeneidade no campo da linguagem. Assim, mesmo que, compreensivelmente, vise a uma heterogeneidade linguística culta, a escola tem de trabalhar a partir da realidade gramatical heterogênea dos alunos. Do contrário, sua atuação na Educação idiomática será frustrada e frustrante para todos, como, lamentavelmente, tem acontecido. (LUFT, 1985)
Saber dos Falantes e Saber dos Linguistas
A relação entre gramaticalidade e comunicabilidade da linguagem falada ganha especial atenção quando o autor informa que o saber linguístico, competência plena de linguagem verbal, comporta o sistema completo das regras que governam os atos de fala, devendo incluir necessariamente uma teoria da comunicação.
"Tal noção de teoria da da linguagem extrapola em muito o estritamente linguístico ou gramatical. A amplitude desse espectro complica, reconheço, a análise e descrição do objeto língua, mas a complexidade está irremediavelmente na linguagem total, objeto específico, me parece, das inquirições linguísticas. (LUFT, 1985, p. 94)
É próprio do pensamento tradicional ingênuo supor que a gramática da língua está nos livros, e que os falantes, em maior ou menor grau, estropiam a língua provocando aquelas afirmações de que "todo mundo fala errado", como se, primeiro, os gramáticos inventassem as regras, para depois os falantes obedecerem a elas e poderem falar. (LUFT, 1985)
Inutilidade e Nocividade da teoria gramatical no ensino da Língua Materna
"Podemos, sim, fazer o aluno crescer em linguagem, melhorar seu nível, aumentar o vocabulário, os recursos expressionais, tomar consciência das potencialidades da língua. E dominar a escrita, com suas regras ortográficas, mas veja-se bem: a escrita, sinalização secundária, poucos utilizam, problema socioeconômico que a escola não pode resolver." (LUFT, 1985, p. 96)
Completa o autor dizendo ainda que ensinar Gramática em sala de aula é inútil, se não, prejudicial, dados os métodos com que isso vem sendo feito. Isso se mostra quando qualquer exame de grande parte dos livros usados nas escolas demonstrará falhas semelhantes ou piores. Assim, o ensino tradicional de Língua Portuguesa tende a incutir no aluno a obsessão do erro, em vem de lhe liberar os poderes da linguagem e aprimorar a competência comunicativa.
O ensino de qualquer teoria gramatical, para Luft, tradicional ou moderna, com termos oficiais ou não, consome naturalmente largas fatias de tempo, que devia ser ganho na prática da língua, é malbaratado em definições e classificações discutíveis, análises canhestras e superadas, gramaticais sem objetivo.
Diante de todas essas implicações práticas e teóricas, se apresenta a seguinte indagação: salvação na Linguística? Sabe-se que a Gramática tradicional tem sido criticada e até desacreditada em muitos pontos pelas modernas ciências da linguagem. De tal forma que um jovem professor saído de cursos de Letras dificilmente irá ao ensino sem saber do mau conceito da Gramática tradicional. Por isso, de duas uma: ou ensinará pouca gramática ou nenhuma, ou procurará aplicar em seus alunos as aulas de Linguística que teve na Universidade.
O autor avisa decepcionar os deslumbrados da Linguística mas afirma mesmo assim que nenhum ensino em crise pode ser salvo pela simples troca de uma teoria por outra, ainda que esta, como a Linguística, seja do mais alto nível científico.
O que a Linguística traz de positivo ao ensino de línguas são as noções corretas de linguagem e língua, de variantes e registros, de que não há língua que não evolua, de que o uso e os fatos devem prevalecer sobre os preconceitos, e, sobretudo, a noção de que a língua é um saber interior, pessoal, dos falantes, de onde o ensino deve partir. (LUFT, 1985)
Língua e Liberdade
As reflexões lufteanas acerca do emblemático e, por que não dizer, secular conflito entre a tradição gramaticalista e a inovação do ensino de língua materna chegam aqui ao seu ápice, batendo frontalmente no construto gramatiquês idealizado por tantas gerações de "doutos em língua".
Para Luft, há o ensino ideal, a educação ideal, que todos desejamos. E esta educação há de ser inflamada pela liberdade, como a tem preconizado figuras da qualidade histórica de um Paulo Freire.
A tarefa não é fácil. O comodismo e o sistema de ensino posto levam a seguir, cegamente, um currículo pronto. É natural que haja dificuldades num terreno de areias movediças, ainda em expansão, como é o das teorias da linguagem.
É preciso encarar essa realidade como professor, e apresentá-la aos alunos, torná-la base de um ensino autêntico, verdadeiro e vital. Esse novo ensino requer professores competentes e seguros, livres e muito bem informados do que ocorre no campo das pesquisas sobre a linguagem. Não, porém, para impingir ao aluno novas teorias, e sim para, junto com o aluno, praticar a língua - única maneira de fazer com que o aluno a domine, a maneje melhor, e se sinta detentor de poder sobre ela, e não viver como um servo, humilhado pela língua que detém.
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